LEIS TEMPORÁRIAS/CASA DE MORADA DE FAMÍLIA/DIREITO À HABITAÇÃO/CONFLITO DE DIREITOS/PROPORCIONALIDADE

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LEIS TEMPORÁRIAS/CASA DE MORADA DE FAMÍLIA/DIREITO À HABITAÇÃO/CONFLITO DE DIREITOS/PROPORCIONALIDADE

2 de Fevereiro, 2023 Natividade Almeida Comments Off

Processo:
1846/07.4TBFUN-AN.L1-1

Relator:
AMÉLIA SOFIA REBELO

Descritores:
LEIS TEMPORÁRIAS
CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
DIREITO À HABITAÇÃO
CONFLITO DE DIREITOS
PROPORCIONALIDADE

Data do Acórdão:
02-02-2023

Votação:
DECISÃO INDIVIDUAL

Meio Processual:
APELAÇÃO

Decisão:
PROCEDENTE

Sumário:

I – Os vícios da decisão de facto suscetíveis de gerar a nulidade da sentença nos termos do art.º 615º do CPC serão ‘apenas’ o da prolação de decisão de direito sem fundamentos de facto que suportem ou integrem os respetivos pressupostos legais, e o da omissão de pronúncia sobre questão de facto suscitada pelas partes.

II – Apesar de o conceito de casa de morada de família corresponder a facto jurídico complexo que surge legalmente definido no art.º 10º, nº 3 da Lei de Bases da Habitação, não deixa por isso de consubstanciar facto ou fenómeno empiricamente apreendido e social e leigamente entendido com o sentido com que é juridicamente entendido, em síntese, como o espaço físico onde os elementos de um agregado familiar residem de forma habitual e com caráter de permanência, aí detendo o centro da sua organização pessoal, doméstica, familiar e social, em condições de continuidade e de preservação da intimidade e privacidade familiar.

III – A omissão de motivação do resultado do julgamento de facto não constitui fundamento nem dá causa à nulidade da sentença posto que aquela (omissão) é resolvida/sanada nos termos do art.º 662º do CPC.

IV – A baixa dos autos ao tribunal recorrido (a título devolutivo) para suprimento da motivação (total ou parcial) da decisão de facto só deve ser determinada quando os factos nela descritos (e não motivados) se revelam necessários à apreciação de mérito do recurso e não se descortinam nos autos os meios probatórios que os suportam.

V – As normas previstas pelo art.º 6º-E, nº 7, als. b) e c) da Lei nº 1-A/2020 de 19.03 consubstanciam um regime excecional e temporário de tutela do direito à habitação que teve e tem como finalidade evitar que as pessoas por ele tutelados fiquem privados da sua habitação durante a pandemia e numa fase subsequente em que para muitos agregados familiares persistem os efeitos económicos e financeiros por aquela criados ou agravados.

VI – A compressão do direito do proprietário que, por força do referido regime excecional e transitório de tutela do direito à habitação, se vê impedido de exercer em pleno o seu direito sobre o imóvel dele objeto, pressupõe no mínimo que esse terceiro seja detentor de título sobre o imóvel oponível ao seu proprietário e que juridicamente legitime a ocupação que até aí dele vinha fazendo: ou a titularidade do direito de propriedade sobre o imóvel até à sua venda na execução ou na insolvência, ou o contrato de arrendamento celebrado com proprietário do imóvel.

VII – O conceito juridicamente relevante de casa de morada de família enquanto realidade sócio-familiar objeto de reconhecimento e tutela legal exclui do âmbito do próprio conceito habitações indevida ou ilegalmente ocupadas.

VIII – Numa lógica de recíproca exclusão do âmbito objetivo e subjetivo de cada norma, do teor da al. b) do nº 7 do art.º 6º-E da Lei nº 1-A/2020 de 19.03 resulta que o seu âmbito de proteção corresponde a imóvel ocupado e fruído como casa de morada de família do próprio executado ou do insolvente; do teor da al. c) do nº 7 do art.º 6º-E resulta expressa e literalmente que visa tutelar o arrendatário que é sujeito passivo da ação de despejo; do teor literal do nº 8 do art.º 6º-E resulta que se destina a prevenir a subsistência do executado ou do declarado insolvente.

IX – A entrega de imóvel vendido em sede de execução ou de insolvência deve ser suspensa ipso facto independentemente de requerimento nesse sentido e de despacho que o declare se e logo que o executor da entrega empiricamente se aperceba que aquele constitui casa de morada de família do executado ou do insolvente.

X – A suspensão da entrega de imóvel só constitui efeito automático ou ope legis depois de, cumprido o contraditório, resultar assente ou comprovado que aquele corresponde a casa de morada de família do executado ou do insolvente.

XI – Diversamente, a situação tutelada pelo nº 8 do art.º 6º-E reporta a imóvel que não constitui a casa de morada de família do executado ou do insolvente, pressupõe que por estes seja requerida a sustação da entrega, e exige a alegação e verificação de pressuposto de apreciação casuística (que a entrega do imóvel a quem o adquiriu no âmbito do processo de execução ou de insolvência causa prejuízo à subsistência do executado ou do insolvente).

XII – Por qualquer forma, decorridos mais de dez anos sobre a apreensão e venda do imóvel no âmbito do cumprimento da liquidação da massa insolvente, no atual estado da situação subjacente à previsão do regime legal excecional e transitório de suspensão de entrega de casa de morada de família/de imóvel afrontaria o princípio constitucional da proporcionalidade resolver o conflito entre o direito de propriedade e o direito à habitação em detrimento do exercício do primeiro, que dele já esteve privado por período superior a dez anos em benefício de quem durante esse mesmo período e sem título ocupou o imóvel.