A CASA DA RELAÇÃO DE LISBOA
Memórias e Percursos
Em Agosto de 2008, passaram 175 anos sobre a (re)fundação contemporânea da Casa da Relação de Lisboa. Terminada a Guerra Civil entre a facção miguelista/absolutista e as hostes pedristas/liberais, era tempo de os vencedores ajustarem contas com as instituições de Antigo Regime. Os bens da Coroa e das ordens monásticas, a fazenda da Universidade de Coimbra e velhos tribunais como a Casa da Suplicação e o Desembargo do Paço não escaparam aos “dies irae”.
Aproveitando a última sede da Casa da Suplicação [de Lisboa], o Ministro da Justiça José da Silva Carvalho (1782-1856) acompanhou de perto a institucionalização do Tribunal da Relação de Lisboa. Instalado e entalado no Arsenal da Marinha, imóvel construído no rescaldo do tremor de terra de 1755 que derribou Lisboa, o Tribunal da Relação de Lisboa atravessou a Monarquia Constitucional, a Primeira República, a Ditadura Militar e o Estado Novo. Sobreviveu à conjuntura revolucionária de 1974, adaptou-se às novas tecnologias e à feminilização, estando de bem com os valores democráticos.
Escapou a tentativas de saneamento político, a um grande incêndio e ao colapso das velhas instalações. Deu nome a uma prestigiada revista, a Gazeta da Relação de Lisboa (1885-1941), participou activamente na construção das bases do Poder Judicial, acolheu os desembargadores que, vindos de Ponta Delgada, Nova Goa, Luanda e Lourenço Marques (Maputo), demandavam um lugar no quadro das Relações metropolitanas e foi, dentre todas, a “alma mater” geradora dos conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça.
A abertura das portas aos cidadãos e a dinamização de um programa cultural anual poderão trazer a esta velha casa de raízes medievais uma imagem bem mais completa e ambiciosa do que a respeitável, mas ultrapassada, auto-representação do tribunal como local onde se apreciam recursos e tecem doutos acórdãos.
As Raízes: Domus Suplicationis
Não se revendo nas instituições de Antigo Regime, as elites jurídicas liberais portuguesas que deram corpo e garantiram o futuro do Tribunal da Relação de Lisboa nunca gostaram de invocar a herança da extinta Casa da Suplicação. E, contudo, ali ficariam duradouramente o mobiliário, as alfaias de prata, a beca profissional de dois corpos, as formas de tratamento e os arquivos de antanho. Como que a varrer dúvidas, ou a atormentar os espíritos, as Ordenações Filipinas falam frequentemente em Relação [de Lisboa] como sinónimo de Casa da Suplicação.
A Casa da Suplicação, individualizada a partir da Casa da Justiça da Corte, ou Casa d’El-Rei, granjeara visibilidade desde a governação de D. João I (1385-1433). Sendo do tempo em que na língua portuguesa ainda se não consagrara o ditongo “ão” e o “r” fazia vezes de “l”, era chamada de “Casa da Supricaçom” e de “Relaçom”. Até ao reinado de Filipe I, manteve o cariz ambulatório que lhe estava subjacente, acompanhando periodicamente as deslocações da Corte e dos chefes de Estado. Pela derradeira vez se assistiria ao canto-do-cisne desta característica, quando D. João VI fez instaurar no Rio de Janeiro a Casa da Suplicação do Brasil (1808-1833).
A antiga Casa da Suplicação trabalhou, desde o século XVI, com mais de vinte desembargadores, tendo D. João VI estabilizado este corpo profissional togado em sessenta elementos (Alvará de 13.05.1813), número que o Tribunal da Relação de Lisboa só lograria ultrapassar no após-1974.
A Casa era governada e representada pelo Regedor das Justiças e por uma equipa constituída pelo chanceler, desembargadores, corregedores, juízes dos feitos, ouvidores, procuradores e, bem contados, quarenta advogados. O oficialato compreendia o guarda-mor, porteiros, escrivães, solicitadores, meirinhos, tesoureiros, carcereiros, caminheiros, guarda das cadeias, guarda-livros, pajem, alcaides, médico e capelão privativo.
Os trabalhos judiciários eram anualmente abertos com uma solene Missa do Espírito Santo, existindo no interior do edifício, pelo menos, um oratório portátil para as rezas diárias e missa que antecediam as sessões das mesas. O retrato do monarca reinante estava obrigatoriamente no topo da sala da Mesa Grande, por se considerar que era o Juiz Supremo. No exercício das suas funções e em todas as representações institucionais e cerimónias, os magistrados e funcionários estavam obrigados ao porte dos respectivos trajes profissionais e insígnias.
A Casa da Suplicação residia habitualmente no Paço Real. Andou no Paço da Ribeira e, no período da união ibérica, transitou para o Limoeiro (desde 1584). Com o grande terramoto de 1755, ficou provisoriamente instalada no Palácio Almada, às portas de Santo Antão. Na década de 1760, ficou clarificado que todos os pavilhões a construir na Baixa, entre as traseiras dos Paços do Concelho e o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), seriam destinados aos tribunais da Corte e cidade de Lisboa (actuais imóveis Ministério da Administração Interna, Ministério da Justiça e STJ).
A empreitada de reconstrução avançou lentamente. Os primitivos Paços do Concelho e o Real Arsenal da Marinha, ao que tudo indica riscados por Reinaldo Manuel dos Santos, ficaram prontos sensivelmente pela mesma altura (ca. 1774). Mal se terminou a obra do Real Arsenal, instituições como a Casa da Suplicação, o Erário Régio e a Casa do Risco foram ocupar os pavimentos superiores do grande imóvel, com serventia pelo lado da Praça do Município.
O elevado grau de sedução das elites portuguesas pelo paradigma administrativo e judiciário saído da Revolução de 1789 anunciou o fim das instituições judiciárias portuguesas herdadas do Antigo Regime. Expressões como “Casa da Suplicação”, “Desembargo do Paço”, “governador” e “regedor” foram ostracizadas. À semelhança da experiência francesa, o cargo de chanceler-mor, tradicionalmente associado à Casa da Suplicação, foi declarado extinto e substancialmente absorvido pelos novos ministérios. Funções de administração da justiça anteriormente diluídas na esfera do também extinto Tribunal do Desembargo do Paço ficaram cometidas à Secretaria de Estado da Justiça. A empatia pelo administrativismo francês seria de tal ordem que nenhum dos presidentes de Relação se atreveu a reclamar o uso dos títulos honoríficos de regedor da Justiça do Distrito Judicial de Lisboa, de governador da Casa da Relação, ou de chanceler da Relação, a que tinham e têm direito. Não menos significativa ainda é a passividade com que se aceitou trocar o tratamento original de Meritíssimo pelo discutível Excelentíssimo (inicialmente reservado aos presidentes das Relações, Alvará de 15.05.1834).
Tomando o passo à França, que manteve a Missa do Espírito Santo como condimento protocolar anual obrigatório até 1900, a nova Relação de Lisboa enveredou desde o início pelo laicismo, não havendo notícia de celebrações religiosas, presença dos antigos oratórios ou continuidade de capelania.
Nada resta do mobiliário da Casa da Suplicação, pois que as poucas peças chegadas ao século XX pereceram no incêndio que em 1947 devastou parte do Tribunal da Relação de Lisboa. Quanto ao arquivo, este seria incorporado na Torre do Tombo já depois de 1974. A fazer memória, restam as pratarias encomendadas entre os mandatos de D. João IV e D. João V, constituídas por escrivaninhas, campainha, relógio de areia e castiçais. A abertura das portas aos cidadãos e a dinamização de um programa cultural anual poderão trazer a esta velha casa de raízes medievais uma imagem bem mais completa e ambiciosa do que a respeitável, mas ultrapassada, auto-representação do tribunal como local onde se apreciam recursos e tecem doutos acórdãos.
Domus Appelationis Olissiponensis
Tempos de Monarquia Constitucional
O Ministro da Justiça do primeiro liberalismo, José da Silva Carvalho (1782-1856), tentou implementar, logo em 1822, uma reformação geral do mapa judiciário e estruturas judicativas de 2.ª Instância. A Carta de Lei de 12.11.1822 propunha a criação das Relações de Lisboa, Porto, Mirandela, Viseu e Beja, destinando-se ao primeiro destes tribunais 1 presidente, 15 desembargadores, 1 procurador da Coroa, 1 procurador da Fazenda, 1 promotor de justiça, 1 solicitador, 2 escrivães, 1 tesoureiro, 1 guarda-mor, 1 guarda-menor e 1 porteiro.
Porém, a modernização da administração da justiça e a efectiva consagração do Poder Judicial tributário do ideário de 1789 teriam de aguardar o segundo liberalismo saído da Guerra Civil. O ideólogo do projecto foi José Xavier Mouzinho da Silveira (1770-1849), mas a concretização coube ao Ministro da Justiça, José da Silva Carvalho. Entre a entrada das forças liberais em Lisboa e Setembro de 1833, os ministros Agostinho Freire e José da Silva Carvalho legislaram freneticamente. Um pouco antes, o Decreto de 18.04.1833 dividira o território metropolitano nos Distritos Judiciais de Lisboa, Porto, Lamego e Castelo Branco, que pelo Decreto de 17.04.1834 ficava reduzido a Lisboa, Porto e Lamego. As Ilhas dos Açores viram instalada a sua Relação em Ponta Delgada (1833-1910), após a curta experiência da Relação de Angra do Heroísmo (1829-1832).
Silva Carvalho mostrou-se irredutível quanto às instituições de Antigo Regime. O Decreto de 3.08.1833 extinguiu o Tribunal do Desembargo do Paço. O Decreto de 28.07.1833 declarava fundadas as Relações de Lisboa, Porto, Castelo Branco e Lamego, e o Decreto de 30.07.1833 mandava dissolver a Casa da Suplicação, em conformidade com a proposta de Mouzinho da Silveira (Decreto n.º 24, de 16.05.1832). Cerca de um mês e meio mais tarde, o mesmo Silva Carvalho promulgava o Decreto de 14.09.1833, relativo à institucionalização do Supremo Tribunal de Justiça.
No dia 2.08.1833, Silva Carvalho fez empossar, na sede da extinta Casa da Suplicação, a Comissão Instaladora da nova Casa da Relação de Lisboa. Os magistrados nomeados e capitaneados pela vara de Bento Pereira do Carmo (1776-1845) eram adeptos da causa liberal, tendo alguns deles transitado ulteriormente para o primeiro quadro constitutivo do STJ.
No Real Arsenal da Marinha, continuavam os teres e haveres da Casa da Suplicação, a saber, papéis e livros de escrituração do cartório e chancelaria, livros jurídicos impressos, mobiliário (cadeiras, mesas, bengaleiro, lavatório, roupeiro, armários, arcazes e pratarias). Os espaços, com serventia pela Rua do Arsenal, incluíam a escadaria de serviço, os “passos perdidos” (átrio decorado com silhares de azulejos e brasão josefino), o gabinete do Presidente, áreas administrativas (secretaria, tesouraria, expediente, arquivo, biblioteca), Casa das Conferências (antigas mesas pequenas), sala do plenário e cerimónias (antiga mesa grande) e dependências relativas à Procuradoria Régia.
O vocabulário instaurado esforça-se por fugir à terminologia anterior a 1833: em vez de “casa”, “tribunal”; no lugar de “regedor”, “presidente”. O juramento de investidura, feito com a mão posta sobre a Bíblia, conforma-se à letra do Decreto de 17.06.1832, respeitando a fidelidade à religião católica, à Constituição de 1826, à Monarquia Constitucional e às leis sancionadas em Cortes. Quando, em 28.02.1835, se manda revogar o projecto da Relação de Lamego (que nunca chegara a ser instalada), o território continental era partilhado entre as Relações de Lisboa e Porto, estando as Ilhas dos Açores adstritas à Relação de Ponta Delgada.
A esse tempo, o espaço configurado pelo Real Arsenal era mais do que suficiente para responder à pequenez das instituições ali alojadas em 1833: Erário Régio, entretanto extinto e convertido em Tribunal do Tesouro Público
(sala dita do “Almirantado” e seus anexos), a que veio a suceder o Tribunal de Contas; Tribunal de Comércio de 1.ª Instância; Chancelaria-Mor, extinta; Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros; Armazéns e Escritórios da Marinha e todo o Tribunal da Relação de Lisboa e Procuradoria Régia. Segundo o Decreto de 6.10.1835, o titular da pasta da Justiça entendia que o Real Arsenal estava em condições de albergar a Relação, os Tribunais de 1.ª Instância e de Polícia Correccional, os escritórios dos contadores e escrivães e as estruturas da anunciada Ordem dos Advogados.
O Decreto de 21.05.1841 (Nova Reforma Judiciária) fixou duravelmente a orgânica e as competências do Tribunal da Relação de Lisboa pelos períodos da Monarquia Constitucional e Primeira República. Em termos de competência territorial, o Tribunal da Relação de Lisboa abrangia todos os espaços de Portugal Continental não adstritos à Relação do Porto, Arquipélago da Madeira, Ilhas de Cabo Verde e Guiné, bem como Angola e Moçambique (territórios depois integrados nas Relações de Luanda e de Moçambique).
A cúpula deste tribunal de 2.ª Instância era preenchida com 1 Presidente e 1 Vice-Presidente, sendo os seus impedimentos supridos pelo Desembargador Decano. O quadro de magistrados contemplava 20 desembargadores letrados, nomeados pelo Chefe de Estado em carta selada e ornada de fita de seda azul e branca. O Ministério Público estava obrigatoriamente representado por 1 procurador régio e 2 ajudantes. Quanto aos funcionários efectivos, o quadro compreendia 1 guarda-mor (= secretário e arquivista), 1 revedor, 1 contador, 4 escrivães, 5 guardas-menores e 2 oficiais de diligências.
Na qualidade de tribunal de 2.ª Instância, ou de apelação, a Relação detinha um vasto conjunto de competências, incluindo as matérias disciplinares dos magistrados de 1.ª Instância. Alargadas e complexas eram também as atribuições iniciais dos presidentes, nelas se conglobando o licenciamento do exercício da advocacia e a inspecção das cadeias situadas na sede da Relação. A instituição podia reunir a totalidade do colégio dos desembargadores (Tribunal Pleno ou Plenário), ou funcionar por secções especializadas, em concreto a cível e a criminal.
À semelhança da extinta Casa da Suplicação, o Tribunal da Relação de Lisboa era o tribunal de 2.ª Instância mais prestigiado de Portugal, competindo-lhe facultar juízes extravagantes ao STJ sempre que aquele alto tribunal se ressentia da falta de magistrados. Esta situação de privilégio era frequentemente reforçada pelo protocolo de Estado, uma vez que o Poder Judicial não era representado nem pelo Ministro da Justiça, nem pelo Presidente do STJ singularmente considerado, mas pelos “tribunaes” da capital (Presidente do STJ; Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, Procurador-Geral, juiz de 1.ª Instância em representação dos Juízos Cíveis e Criminais de Lisboa).
Entre 1833-1910, o Tribunal da Relação de Lisboa recrutou todos os seus magistrados dentre alunos diplomados pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, situação que se arrastou ao longo da Primeira República (1910-1926), uma vez que a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa só começou a formar alunos em 1913. Foi também o tribunal de 2.ª Instância que mais desembargadores conseguiu colocar nos quadros do STJ. Amostra expressiva dos magistrados do Tribunal da Relação de Lisboa participou activamente na vida política e administrativa de Portugal, integrou comissões especializadas destinadas à produção de códigos e diplomas, prestou colaboração a revistas jurídicas prestigiadas (ex.: Gazeta da Relação de Lisboa) e publicou, em nome individual, monografias jurídicas de merecimento.
Tempos de Monarquia Constitucional
A emergência e consolidação da Primeira República (1910-1926) não representou um corte fracturante com as instituições públicas herdadas do liberalismo. O novo Ministro da Justiça, Afonso Costa (1871-1937), procedeu no imediato à republicanização das estruturas judiciárias de cúpula, mas sem beliscar a estrutura piramidal dos tribunais (1.ª Instância, 2.ª Instância, STJ), nem o sistema de recrutamento e de promoção dos magistrados.
O reformismo implementado não deixou de reflectir a marca ideológica republicanizadora. No espectro das mudanças mais visíveis, contam-se a transformação da Secretaria dos Negócios Eclesiásticos e da Justiça em Ministério da Justiça e dos Cultos, a conversão da Procuradoria-Geral da Coroa em Procuradoria-Geral da República (Decreto de 8.10.1910), a abolição do juramento religioso sobre a Bíblia e a tentativa de colocação de bustos seriados da República nos tribunais superiores (modelo Simões Sobrinho, 1908). Afonso Costa preencheu os cargos ministeriais e as estruturas dirigentes dos tribunais superiores com agentes da sua confiança. Aos saneamentos operados no STJ, juntou-se a depuração levada a cabo com mão de ferro no Tribunal da Relação de Lisboa. Já a secretaria manteve-se tranquilamente em funções com os mesmos quadros, confirmando-se a tendência longitudinal da administração pública assente na mudança dos lugares de topo e na manutenção do oficialato.
Logo em 1910, agastado com a recusa do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedentes as acusações contra o ditador monárquico e Primeiro-Ministro João Ferreira Franco Pinto Castelo Branco (1855-1929), Afonso Costa determinou que os desembargadores Abel de Matos Abreu, Basílio Veiga, António Viarma e Manuel Pereira e Castro fossem compulsivamente transferidos para a Relação de Nova Goa (Decreto de 21.12.1910).
Sem surpresas, ao longo da Primeira República manteve-se a prática da exercitação de cargos político-administrativos por magistrados e o cursus honorum assente no critério da antiguidade. O volume de trabalho no Tribunal da Relação de Lisboa aumentou significativamente logo nos alvores da República por força do Decreto de 24.10.1910 que ordenou a extinção da Relação dos Açores e a transferência do acervo arquivístico e dos Porém, a modernização da administração da justiça e a efectiva consagração do Poder Judicial tributário do ideário de 1789 teriam de aguardar o segundo liberalismo saído da Guerra Civil. O ideólogo do projecto foi José Xavier Mouzinho da Silveira (1770-1849), mas a concretização coube ao Ministro da Justiça, José da Silva Carvalho. Entre a entrada das forças liberais em Lisboa e Setembro de 1833, os ministros Agostinho Freire e José da Silva Carvalho legislaram freneticamente. Um pouco antes, o Decreto de 18.04.1833 dividira o território metropolitano nos Distritos Judiciais de Lisboa, Porto, Lamego e Castelo Branco, que pelo Decreto de 17.04.1834 ficava reduzido a Lisboa, Porto e Lamego. As Ilhas dos Açores viram instalada a sua Relação em Ponta Delgada (1833-1910), após a curta experiência da Relação de Angra do Heroísmo (1829-1832).
Silva Carvalho mostrou-se irredutível quanto às instituições de Antigo Regime. O Decreto de 3.08.1833 extinguiu o Tribunal do Desembargo do Paço.
O Decreto de 28.07.1833 declarava fundadas as Relações de Lisboa, Porto, Castelo Branco e Lamego, e o Decreto de 30.07.1833 mandava dissolver a Casa da Suplicação, em conformidade com a proposta de Mouzinho da Silveira (Decreto n.º 24, de 16.05.1832). Cerca de um mês e meio mais tarde, o mesmo Silva Carvalho promulgava o Decreto de 14.09.1833, relativo à institucionalização do Supremo Tribunal de Justiça.
No dia 2.08.1833, Silva Carvalho fez empossar, na sede da extinta Casa da Suplicação, a Comissão Instaladora da nova Casa da Relação de Lisboa. Os magistrados nomeados e capitaneados pela vara de Bento Pereira do Carmo (1776-1845) eram adeptos da causa liberal, tendo alguns deles transitado ulteriormente para o primeiro quadro constitutivo do STJ.
No Real Arsenal da Marinha, continuavam os teres e haveres da Casa da Suplicação, a saber, papéis e livros de escrituração do cartório e chancelaria, livros jurídicos impressos, mobiliário (cadeiras, mesas, bengaleiro, lavatório, roupeiro, armários, arcazes e pratarias). Os espaços, com serventia pela Rua do Arsenal, incluíam a escadaria de serviço, os “passos perdidos” (átrio decorado com silhares de azulejos e brasão josefino), o gabinete do Presidente, áreas administrativas (secretaria, tesouraria, expediente, arquivo, biblioteca), Casa das Conferências (antigas mesas pequenas), sala do plenário e cerimónias (antiga mesa grande) e dependências relativas à Procuradoria Régia.
O vocabulário instaurado esforça-se por fugir à terminologia anterior a 1833: em vez de “casa”, “tribunal”; no lugar de “regedor”, “presidente”. O juramento de investidura, feito com a mão posta sobre a Bíblia, conforma-se à letra do Decreto de 17.06.1832, respeitando a fidelidade à religião católica, à Constituição de 1826, à Monarquia Constitucional e às leis sancionadas em Cortes. Quando, em 28.02.1835, se manda revogar o projecto da Relação de Lamego (que nunca chegara a ser instalada), o território continental era partilhado entre as Relações de Lisboa e Porto, estando as Ilhas dos Açores adstritas à Relação de Ponta Delgada.
A esse tempo, o espaço configurado pelo Real Arsenal era mais do que suficiente para responder à pequenez das instituições ali alojadas em 1833: Erário Régio, entretanto extinto e convertido em Tribunal do Tesouro Público (sala dita do “Almirantado” e seus anexos), processos pendentes naquele tribunal para a Casa da Relação de Lisboa. A Novíssima Reforma Judiciária de Costa Cabral, revogada in partibus por numerosas leis avulsas, mantinha-se em vigor. Instituído o Conselho Superior da Magistratura em 1912, os executivos oscilariam até 1926 entre o reclamado “autogoverno” e as tentativas de controlo do Poder Judicial.
Entre a proclamação da República e o término da Grande Guerra de 1914-18, as mulheres passam a ser providas em cargos administrativos (escriturárias, contínuas), enquanto a advocacia e o notariado iniciaram o processo de feminilização. As práticas de produção de documentos mecanizaram-se lentamente, lançando-se mão da máquina de dactilografar.
É durante o período da Primeira República, e após a promulgação da Constituição de 1911, que se procede à reforma do mobiliário do Salão Nobre do Tribunal da Relação de Lisboa, tendo o pintor-decorador Pereira Cão executado as tábuas epigráficas do tecto. Em 1918, uma série de comarcas da fronteira norte do Distrito Judicial de Lisboa migraram para o recém-instituído Distrito Judicial de Coimbra.
Tempos de Estado Novo
O importante conjunto de reformas levadas a cabo durante os primeiros tempos da Ditadura Militar pelo Ministro Manuel Rodrigues Júnior (1926-1928) conheceria enquadramento institucional e ideológico durante a longa vigência do Estado Novo.
O Estatuto Judiciário promulgado em 1927 e revisto em 1928 reconhecia o Tribunal da Relação de Lisboa e respectivo território, fixando em 15 os desembargadores do quadro (posteriormente 16). Além do Vice-Presidente, a estrutura de cúpula era representada pelo Presidente, um juiz conselheiro do STJ escolhido pelo Ministro da Justiça e nomeado em comissão de serviço. O Ministério Público estava representado pela Procuradoria: 1 Procurador da República e 1 ajudante e o pessoal administrativo da 2.ª Secção da Secretaria. Quanto ao oficialato, a Secretaria Administrativa dividia-se em Secção Central (expediente) e Secção Judicial, sob a direcção de 1 secretário. Dela faziam parte 1 primeiro-oficial, 1 segundo-oficial, 1 terceiro-oficial, 5 contínuos de 1.ª classe, 1 contínuo de 2.ª classe e 1 correio. A estrutura hierárquica da Secretaria era representada pelo chefe de Secretaria (= secretário), chefe de Secretaria adjunto (1), chefes de Secção (4) e oficiais de diligências (4).
Com o Estatuto Judiciário de 1944, a orgânica do Tribunal da Relação de Lisboa complexifica-se. A Secretaria continua dividida em 2 repartições, a Administrativa e a Judicial, cada uma com 2 Secções, garantindo a 2.ª Secção o expediente do Ministério Público.
O Tribunal da Relação de Lisboa poderia funcionar em plenário de desembargadores e por secções. Desde 1926 que o Ministério da Justiça assumia oficialmente que a instalação dos tribunais superiores era encargo directo do Estado.
As funções de biblioteca e de arquivo estavam integradas na 1.ª Secção da Repartição Administrativa da Secretaria. O Tribunal compreendia 1 Presidente (conselheiro em comissão de serviço), 1 vice-presidente, 16 desembargadores, 1 secretário, 1 primeiro-oficial, 5 terceiros-oficiais, 5 contínuos de 1.ª classe, 1 contínuo de 2.ª classe, 1 correio, 1 contador-tesoureiro, 1 contador adjunto, 2 chefes de Secção, 2 escriturários de 1.ª classe, 2 escriturários de 2.ª classe, 5 copistas, 2 oficiais de diligências e 1 contínuo de 2.ª classe.
A estrutura supra-indicada permaneceria praticamente inalterada até à Revolução de 1974, conforme se infere da análise do Estatuto Judiciário de 1962. Em 1973, o Ministério da Justiça procedeu à criação do Distrito Judicial de Évora, reforma que fez retirar ao Distrito Judicial de Lisboa o Alentejo e o Algarve. À data da criação da Relação de Évora (DL n.º 202/73, de 4 de Maio), o Tribunal da Relação de Lisboa encaminhara-se para os 24 desembargadores, superando o STJ (18 conselheiros), a Relação do Porto (18 desembargadores), a Relação de Coimbra (10 desembargadores) e a novel Relação de Évora (6 desembargadores).
Depois de 1974
A democratização operada pela Revolução de 25 de Abril de 1974 provocou alterações na estrutura orgânica do Tribunal da Relação de Lisboa, na funcionalidade, no modo de recrutamento dos funcionários de justiça e no alargamento do quadro de desembargadores, com admissão de juízes auxiliares. Na crista da onda do fervor ideológico, os retratos de Oliveira Salazar (1889-1970), Manuel Rodrigues Júnior (1889-1946) e Manuel Cavaleiro de Ferreira (1911-1992) foram destruídos. O do Presidente da República, António Óscar de Fragoso Carmona (1869-1951), escapou, mas foi retirado do Salão Nobre e colocado discretamente na saleta que servira de apoio administrativo ao Tribunal de Contas.
A comissão interministerial de reclassificação (e saneamento) instituída após 1974 mostrou-se benevolente com os magistrados do Tribunal da Relação de Lisboa que haviam colaborado com o regime político deposto e com os desembargadores que tinham desempenhado comissões de serviço no extinto Tribunal Plenário Criminal de Lisboa entre 1945-1974 (mais informação no colectivo Tribunais Políticos. Tribunais militares especiais e tribunais plenários durante a Ditadura e o Estado Novo: 2009).
O autogoverno da instituição, baseado no escrutínio dos candidatos à Presidência e Vice-Presidência, foi uma das conquistas democráticas mais visíveis. Do lado do cidadão, verificou-se uma crescente massificação das apelações mediadas por advogados. Às secções tradicionais, acrescentou-se uma terceira, a “secção social”. Outra alteração significativa incidiu sobre a crescente feminilização da Magistratura do Ministério Público (acesso à 1.ª Instância desde 1974) e da Magistratura Judicial (acesso à 1.ª Instância desde 1977).
Nos anos que se seguiram, a Casa da Relação de Lisboa seria o primeiro tribunal português de 2.ª Instância a acolher uma desembargadora.
Em finais da década de 1980, o DL n.º 214/88, de 17 de Junho, fixava a existência de 3 secções cíveis, 2 secções criminais, 1 secção social e 74 desembargadores, cujo número ascenderia a 84 no ano de 1992. Este número aumentaria para 108, de acordo com o mapa anexo ao Decreto-Lei n.º 186-A/99, de 31 de Maio, que veio regulamentar a Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro (Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais).
Na sequência da Lei n.º 105/2003, de 10 de Dezembro, que integrou os juízes dos tribunais militares nos tribunais judiciais, o DL n.º 219/2004, de 26 de Outubro, determinou que o quadro dos 108 desembargadores do Tribunal da Relação de Lisboa acolhesse vagas para representantes dos três ramos das Forças Armados e da GNR (quatro juízes militares).
Em meados de 2008, o Tribunal da Relação de Lisboa contava 128 desembargadores (sendo 41 desembargadoras), 5 secções cíveis, 3 secções criminais, 1 secção social, 102 funcionários de justiça, além do Ministério Público, representado por 21 procuradores-gerais adjuntos. O número de magistrados subiria para 133, por força do disposto no DL n.º 128/2009, de 28 de Janeiro.
Instalações e bens
O edifício
A sede do Tribunal da Relação de Lisboa é um edifício pombalino, de traça arquitectónica funcional e austera, desenhado na década de 1760 por um técnico da Casa do Risco, Reinaldo Manuel (autor presuntivo). O imóvel, originariamente designado “Real Arsenal da Marinha”, foi construído a ocidente do antigo Paço Real da Ribeira, em espaços ocupados pela Casa da Índia e respectivas dependências. É propriedade do Estado Português, estando o piso superior e sótãos afectos a usufruto do Tribunal da Relação de Lisboa por tempo indeterminado.
O espaço ocupado pelo Tribunal da Relação de Lisboa engloba a escadaria de serviço, um vestíbulo (vestibulum), o átrio pombalino (Passos Perdidos), a antiga sala do Erário Régio/Tribunal de Contas (dita do Almirantado, decorada entre 1911-1919) e seus anexos (Sala Carmona e espaços do Ministério Público), a “Sala das Pratas” (Gabinete do Presidente), um corredor de ligação ao peristylum rectangular, a Biblioteca, a Casa das Conferências (antiga Mesa Pequena da Casa da Suplicação) e o Salão Nobre. A partir dos Passos Perdidos, discreta escadaria dá acesso aos pisos superiores 2 e 3, dispostos à volta do peristylum superiormente iluminado por clarabóia.
No crepúsculo de Oitocentos, distantes iam os tempos em que o Decreto de 6.10.1835 dizia ser possível concentrar no Arsenal um “palácio de justiça de Lisboa” com todos os serviços judiciários da capital. A Carta de Lei de 27.04.1876 autorizava o Governo a lançar a empreitada de construção de um Palácio de Justiça em Lisboa. O programa do Palácio da Justiça de Lisboa, ganho pelo jovem arquitecto Miguel Ventura Terra e publicitado no Diário do Governo de 23.10.1888, ambicionava a concentração de todos os serviços de justiça de Lisboa num palácio a edificar junto da Avenida da Liberdade.
Os sucessivos adiamentos de projectos e a crescente falta de espaço levaram o Ministro Manuel Rodrigues Júnior a lançar as bases para um novo Palácio da Justiça que conglobasse o STJ, o Tribunal da Relação de Lisboa, a Procuradoria-Geral da República e o Conselho Superior Judiciário. O projecto arrastou-se pela década de 1930 e não chegou a sair do papel. Entre a 2.ª metade da década de 1940 e os alvores dos anos cinquenta, o Ministro Cavaleiro de Ferreira voltou à questão, mas sem sucesso.
Em 11 de Maio de 1947, grassou no Tribunal da Relação de Lisboa um incêndio de consideráveis proporções que destruiu parte considerável do antigo mobiliário e documentação. As obras de restauro, inauguradas em 13 de Maio de 1948 pelo Ministro Manuel Cavaleiro de Ferreira e pelo Presidente Nunes da Rica, comportaram as seguintes intervenções: restauro do brasão régio de D. José I, no tecto dos Passos Perdidos; aplicação de azulejos neobarrocos nos Passos Perdidos; colocação de candelabros de bronze dourados e cristais nos tectos de algumas dependências(mestre António Ribeiro);
substituição dos antigos gradins de ferro da escadaria por madeira de mogno; mobiliário revivalista neobarroco (mestre António Ribeiro); restauro da pintura do tecto e paredes do Salão Nobre; apetrechamento da Biblioteca com estantes e mobília estilo Luís XVI; embelezamento de diversos compartimentos do Tribunal da Relação de Lisboa com telas cedidas pelo Museu Nacional de Arte Contemporânea (Alves de Sá, João Reis, Francisco Metrass); descerramento de retratos de Oliveira Salazar, Manuel Rodrigues e Cavaleiro de Ferreira no peristilo; inauguração de uma vitrina com sinetes desactivados e com a colecção de pratarias da Casa da Suplicação.
Com a saída do Tribunal de Contas para o torreão oriental do Terreiro do Paço, em 1954, o Tribunal da Relação de Lisboa ganhou a chamada “Sala do Almirantado” e cubículos que lhe estavam afectos, criando uma 2.ª Casa das Conferências. Entre 1958-1966, o imóvel acolheu provisoriamente o Ministério da Justiça, em cuja sede a Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais (DGEMN) procedia a obras de vulto.
O Palácio da Justiça de Lisboa, pensado no mandato de Antunes Varela, reservava lugar de destaque ao Tribunal da Relação de Lisboa no Alto do Parque Eduardo VII. Interrompido o projecto na época de Almeida Santos, o Tribunal da Relação de Lisboa tem permanecido “entalado” no Arsenal, como que dividido entre os afectos à Baixa e a ausência de soluções pertinentes.
Nos finais da década de 1990 (1996-1998), a Secretaria-Geral do Ministério da Justiça promoveu obras de restauro nos espaços ocupados pelo Tribunal da Relação de Lisboa, limpeza e conservação de obras de arte, e ocupação plena do sótão (905 metros quadrados), com manutenção do cavername pombalino. O projecto de arquitectura e restauro, arrematado pela firma bracarense de Arlindo Correia & Filhos, rondou os 158.479.529$00. O restauro dos tectos, estuques, ornatos, obras de arte e mobiliário de estilo foi confiado à Fundação Ricardo do Espírito Santo Silva.
Os projectos de cidades judiciárias pensados para a Lisboa do após-1974, nomeadamente o Projecto Monsanto (Ministro Laborinho Lúcio), o Projecto Chelas (Ministro Vera Jardim) e o Projecto Campus da Justiça (Ministro Alberto Costa), não conglobavam o Tribunal da Relação de Lisboa.
Dividida entre a vontade de ficar e a aparente ausência de alternativas para uma saída dignificadora, a Casa da Relação de Lisboa foi permanecendo na exiguidade do Arsenal, qual filho que não cumpre o desígnio de se emancipar do gostoso colo materno.
A Biblioteca do Tribunal da Relação de Lisboa
Do acervo bibliográfico do Tribunal da Relação de Lisboa, constam 4371 registos de obras jurídicas dos séculos XIX e XX, não se incluindo neste inventário as colecções de revistas da especialidade. Os registos são efectuados no “Lotus.notus6”, base de dados desenvolvida pelo IGFEJ, alojada no endereço http:www.dgsi.pt, que permite efectuar ligação às principais bibliotecas das instituições judiciárias portuguesas. A estanteria e a mobília da Biblioteca são fábrica revivalista de 1947. A falta de espaço ditou a expansão deste serviço em direcção à antiga Casa das Conferências no ano de 1979, cujas paredes foram guarnecidas de estantes funcionais em madeira para acolhimento de publicações periódicas.
Memórias do Arquivo do Tribunal da Relação de Lisboa
Confirmando as práticas herdadas da Casa da Suplicação, a função de arquivo ficou confiada aos serviços administrativos (Secretaria), desempenhando longamente tarefas de bibliotecário e de arquivista o secretário. Daí, também, o direito ao uso do título honorífico de Guarda-Mor da Casa da Relação de Lisboa.
O Tribunal da Relação de Lisboa herdou o grosso da documentação produzida desde o século XVII pela Casa da Suplicação. Esta documentação esteve guardada em arcas e armários dispostos em depósitos no 3.º piso, entre o grande vão do tecto do Salão Nobre e o cavername dos telhados. Em 1887, os “feitos findos” foram transferidos para o Convento da Estrela e dali para a Torre do Tombo (disposição do Decreto de 12.10.1912). A restante documentação da Casa da Suplicação foi ficando no Tribunal da Relação de Lisboa até 1993. Livros raros foram levados por António Baião para a Torre do Tombo em 1933. Não se sabe que velhos documentos pereceram no incêndio de 1947. O que restava, conjuntamente com outros fundos não tratados, foi “cozendo” lentamente no sótão, por desidratação.
Uma intervenção levada a cabo entre 1991-1992 conduziu o que se conseguiu salvar para a Cadeia de Monsanto, seguindo-se, em 1995, a incorporação na Torre do Tombo.
Outros fundos portadores de interesse, entrados na Torre do Tombo em 1995, respeitavam à Procuradoria Régia junto do Tribunal da Relação de Lisboa (1832-1981), Relação dos Açores (1832-1910), Procuradoria Régia junto da Relação dos Açores (1832-1910) e “arquivo” do Tribunal da Relação de Lisboa (1833-1984).
A sobrelotação do edifício, os danos causados pelo incêndio de 1947, a incessante produção de documentos não apoiada em operações de avaliação e eliminação, e o estado de degradação a que haviam chegado os fundos depositados no imóvel do Tribunal da Relação de Lisboa explicam a inexistência de um arquivo de documentos de conservação permanente nesta instituição.
Novos processos de migração de informação, como a digitalização, poderão permitir ao Tribunal da Relação de Lisboa trazer de volta a casa algumas séries e subséries umbilicalmente ligadas à fundação e momentos mais importantes do pulsar da instituição, como os livros de termos de posses.
Obra artística e bens culturais
No tecto dos Passos Perdidos, é merecedor de atenção um brasão da época de D. José I pintado sobre estuque, o qual foi limpo e restaurado em 1948 e 1998. Os paramentos de azulejos do ciclo pombalino pereceram no incêndio de 1947. Os azulejos narrativos, em azul e branco, que revestem parte dos muros dos Passos Perdidos, são um trabalho revivalista realizado em 1947-1948.
Na Sala Carmona, existe um retrato a óleo de vulto inteiro do então Presidente da República, Marechal Carmona. Foi realizado em 1947 pelo pintor Domingos Rebelo e, até 1974, esteve exposto na cabeceira do Salão Nobre. Apeado após o 25 de Abril, sobreviveu à “damnatio memoriae”, jazendo discretamente num dos compartimentos do Tribunal da Relação de Lisboa.
Na Sala do Erário Régio/Tribunal de Contas, são visíveis diversas datas no interior de medalhões, as quais enfatizam reformas ligadas ao Tribunal da Contas. A intervenção terá sido levada a cabo na vigência do Conselho Superior da Administração Financeira do Estado (1911-1919), criado pelo Decreto de 11.04.1911. Na parede desta sala voltada ao rio Tejo, avulta uma tela setecentista da Ivstitia, de autor não identificado. Pertenceu ao acervo da Casa da Suplicação e encontrava-se na primitiva Casa das Conferências. Segue o gosto maneirista francês e propõe uma alegoria da Justiça, sentada, munida de balança e ladeada por avestruz. A pena de avestruz era o símbolo da deusa da Justiça do Egipto faraónico (deusa Maat), constituindo esta tela reciclagem de um trabalho do pintor Giulio Romano (1499-1546), com glosa de Luca Giordano no Palazzo Medici--Ricardi de Florença (opus de 1684-1686). Limpeza e conservação operada em 1998.
No campo das obras de arte, são ainda de destacar, pelo seu valor testemunhal, um busto da República em gesso e a obra de epigrafia jurídica emoldurada no tecto do Salão Nobre pelo decorador Pereira Cão no período de vigência da Constituição de 1911. Este trabalho de decoração foi alvo de campanhas de restauro em 1948 e em 1998.
Relativamente a equipamentos de diferentes épocas, o Tribunal da Relação de Lisboa é detentor de colecções de objectos e peças de mobiliário musealizadas: a) colecção de pratarias da Casa da Suplicação, considerada muito completa e única em Portugal, constituída por bandejas, tinteiros, areeiros, castiçais, campainha e relógio de areia, com brasões régios do período D. João IV-D. João V; b) portadas das estantes da Biblioteca, realizadas nas obras de restauro de 1948; c) conjuntos de mobílias neobarrocos, assentes em pés orientais, conglobando cadeiras, secretárias, armários e mesas, também de 1948, restauradas pela Fundação Ricardo do Espírito Santo em 1997-1998; d) equipamentos mecânicos de produção documental do século XX (ca. 1920-1980), constituídos por máquinas de dactilografar, máquinas de contabilidade, cofre e instrumentos de contagem do tempo, organizados pelo secretário superior do Tribunal da Relação, Manuel Triunfante Martins; e) álbuns fotográficos iniciados em 1948, relativos a magistrados, e obras de restauro inauguradas em 15 de Maio de 1948.
Património simbólico
As cerimónias mais importantes do Tribunal da Relação de Lisboa são a tomada de posse trienal do Presidente, a tomada de posse do vice-presidente, a investidura dos novos desembargadores, a posse dos juízes de Direito de 1.ª Instância de Lisboa e o Juramento dos Solicitadores de Execução. A jubilação dos desembargadores é celebrada sem cerimonial específico. Nestes actos, não se segue o cerimonial judiciário português, estando consagrados os procedimentos protocolares do Poder Executivo. Nos actos de posse dos funcionários judiciais, também se não pratica o antigo cerimonial judiciário português.
Na década de 1940, entre 1940-1945, o Tribunal da Relação de Lisboa chegou a realizar anualmente uma Abertura do Ano Judiciário, ritual não retomado após 1974.
O traje profissional é, para magistrados do Ministério Público e juízes desembargadores, a antiga beca talar de dois corpos, a qual foi alvo de modernização desde a década de 1960, estando transformada em beca de corpo único. O traje dos magistrados é o mesmo que é usado pelo Presidente e pelo Vice-Presidente.
Os funcionários de justiça já não envergam o antigo traje profissional, composto por fato preto e capa de gala forrada de cetim.
Caídas em desuso estão também as insígnias de juiz e de oficial de justiça.
No Tribunal da Relação de Lisboa existe um grupo coral misto (CORELIS). Fundado em 1993, tem protagonizado intensa actividade artística, sendo formado por magistrados, funcionários judiciais e advogados.
Sem perder de vista as competências especificadas para o Plenário e Secções (Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro), importa frisar que os tribunais de 2.ª Instância não são apenas locais de trabalho, visão que fez escola durante o Estado Novo. Na qualidade de órgão de soberania que é e de representante do Poder Judicial, o Tribunal da Relação de Lisboa pode e deve conceber planos de actividades/e ou uma agenda cultural que contemple projectos de geminação com instituições congéneres, iniciativas museológicas, exposições, visitas guiadas, visitas virtuais apoiadas em imagens, regulamentação do protocolo anual, traje profissional e insígnias, divulgação de iniciativas culturais na página Web e rentabilização do seu património simbólico.
Texto do Historiador e Mestre António Manuel Nunes